BLOG FILÓSOFO GREGO

Quando é que a ação correta tem maior "mérito"? Quando ela é feita espontaneamente, por uma pessoa cuja alma ama naturalmente o que é bom e não sente a menor inclinação de fazer o contrário? Ou quando é feita à custa de muito sacrifício, por férrea convicção racional, enfrentando resistências subjetivas e fortíssimas inclinações em contrário? Estas duas hipóteses de resposta, que chamarei, para facilitar, de hipótese-A (de Aristóteles, devido à distinção que ele traça entre o homem virtuoso e o homem que é meramente continente) e hipótese-K (de Kant, devido aos célebres exemplos das ações cumpridas apenas por dever na Fundamentação da Metafísica dos Costumes) só poderão ser examinadas à luz da determinação prévia do que significa ter mérito. A primeira questão a responder, assim, é o que entendemos por ter mérito.

O termo "mérito" vem do verbo "merecer" e indica a situação em que algo ou alguém merece algo. Usado no contexto moral, "mérito" geralmente indica a situação em que algo ou alguém merece louvor, destaque, reconhecimento ou gratidão. "Ter mérito" significa, portanto, merecer ou ser digno de louvor e reconhecimento. Mas que significa "merecer"? Vejamos as seguintes hipóteses.

(1) S merece X.

Nesse contexto, S é um sujeito e X é alguma coisa (material ou imaterial) que S pode ter ou receber. É irrelevante, na frase, se S tem ou não tem X. No primeiro caso, se estaria dizendo que a situação em que S tem X é "merecida" e, no segundo caso, que a situação em que S tivesse X seria merecida. Isso nos permite modificar (1) para:

(1a) É merecido que S tenha X.

Dessa forma, convertemos o predicado "merece X" no operador "É merecido que", modificando o enunciado "S tem (tenha) X". Se isso for correto, leva-nos à pergunta: O operador "é merecido que" guarda alguma diferença importante em relação aos operadores éticos mais gerais como "é correto que" ou "é adequado que"? Se sim, qual diferença? Vamos examinar os enunciados seguintes:

(i) Se S1 emprestou dinheiro a S2, é correto que S2 pague o valor devido a S1.
(ii) Se S executou bem o seu trabalho, é correto que S receba seu pagamento.
(iii) Se S executou bem o seu trabalho, é correto que S seja chamado de novo na próxima vez.
(iv) Se S executou bem o seu trabalho, é correto que S receba uma menção honrosa.

Para (i) e (ii), a troca de "é correto que" por "é merecido que" geraria certa estranheza. Parece que, quando algo é devido, correto, justo, obrigatório, dizer que é simplesmente "merecido" enfraqueceria o tipo de reivindicação que se está tentando expressar. Assim, poderíamos dizer, em primeiro lugar, que "é merecido que" é uma reivindicação deontologicamente mais fraca que "é correto que". Já em (iii) e (iv) ocorre o inverso. Dizer naqueles enunciados que "é correto que" parece forte demais, porque soa como se não chamar S na próxima vez (iii) ou não dar a S uma menção honrosa (iv) fosse indevido, incorreto, injusto e proibido, quando na verdade o que se quer expressar não tem esse sentido tão pesado. Isso reforça a primeira observação de que há uma diferença de "peso deontológico" entre "é correto que" (mais pesado) e "é merecido que" (menos pesado).

Em segundo lugar, poderíamos imaginar, para cada um dos enunciados de (i) a (iv), a situação em que a segunda parte do enunciado, o conteúdo da "consequência", aquela de que se diz que "é correto que", não fosse cumprida. Em (i) e (ii), o não cumprimento implicaria em injustiça, enquanto em (iii) e (iv) implicaria em alguma outra coisa, algo assim como ingratidão, nescidade ou indiscernimento. Se isso estiver certo, "é correto que" está mais ligado ao contexto das obrigações e da justiça, enquanto "é merecido que" está mais ligado ao contexto da dádiva e do agradecimento, isto é, da virtude enquanto percepção prática sagaz da resposta apropriada a certos contextos de ação. Essa seria a segunda diferença.

A terceira está ligada à primeira e à segunda. Quem dá a alguém aquilo que lhe é devido por justiça (como nos exemplos i e ii) não faz mais que cumprir com sua obrigação. Já quem dá a alguém aquilo que lhe é merecido por gratidão ou reconhecimento (como em iii e iv) se mostra especialmente sagaz e virtuoso. Isso quer dizer que, enquanto fazer o que é justo encerra, por assim dizer, o ciclo do justo quando a ação está totalmente feita, dar o que é merecido é uma ação que é, também ela, merecedora de louvor e reconhecimento. Isso quer dizer que o ciclo do mérito, enquanto for levado adiante, é interminável. Reconhecer o mérito de outrem é também dotado de mérito, e assim sucessivamente.

Sendo assim, "É merecido que S tenha X" é um enunciado ético que significaria mais ou menos o seguinte:
- X é uma resposta não obrigatória, mas adequada a algo que S fez previamente.
- Dar X a S equivale a dar a S (ou ao que S fez) o valor que lhe corresponde.
- Não dar X a S equivale a ser ingrato, néscio ou estulto.

A segunda questão a responder é qual o objeto do mérito: o agente ou a ação? Consideremos as seguintes duas construções:


(I) S teve mérito em ter feito X.
(II) X teve mérito.

Convertendo (I) e (II) para o formato de (1), teríamos:

(I-1) É merecido que S tenha algo por ter feito X.
(II-1) É merecido que X tenha algo por ter sido adequado ou bem feito.

Defendo agora que a fórmula II-1 não é estranha por acaso. Ela é estranha porque capta mal o que significa ter mérito. Atribuir mérito à ação é ignorar que existe uma relação entre algo "ter mérito" e "ser merecido que" esse algo tenha algo outro. É ignorar que existe na noção de "mérito" um sentido de "dávida", de "reconhecimento" ou de "agradecimento" que só é apropriado quando expresso em relação a pessoas, e não a ações ou coisas. Por isso, a fórmula I-1 é tão mais fluida. Ela expressa melhor nossas intuições acerca do mérito. Vou dar um exemplo adicional disso.

Suponha que alguém (digamos, S1) escreveu um livro e agora está compondo a dedicatória. Suponha que outro alguém (digamos, S2) tenha sido muito importante, dado grande apoio ou contribuído decisivamente para que o livro viesse a ser escrito na forma final que recebeu. Suponhamos agora que S1 escreva o seguinte na dedicatória:

(D) "A S2, por toda a ajuda que me prestou lendo e comentando os capítulos deste livro".

Nessa dedicatória, S1 menciona a quem se dirige o agradecimento e pelo que precisamente está agradecendo. É, nesse sentido, um agradecimento completo. Mas suponhamos que S1 não chegou a essa fórmula completa, que ele ficou a meio caminho dela e escreveu:

ou (D1) "A S2, por toda a ajuda que me prestou";
ou (D2) "Àquele que leu e comentou os capítulos deste livro".

Na variante D1, S1 teria omitido qual foi exatamente a ajuda que S2 lhe prestou. Já na variante D2, S1 expressou claramente a ajuda que lhe foi prestada, mas omitiu, em vez disso, a pessoa que a prestou. Se nos perguntarmos qual das duas variantes incompletas de agradecimento cometeu ingratidão ou, caso as duas o tenham feito, qual delas cometeu ingratidão maior, creio que teremos que concordar que foi D2, e não D1. Aliás, eu estaria tentado a dizer que ingrata foi D2, pois D1 foi apenas imprecisa ou incompleta. Mas isso corrobora o que eu disse acima. O mérito não pertence à ação, e sim ao agente, de modo que omitir a ação é desculpável, mas omitir o agente é puro ato de ingratidão. Sendo assim, concluo que o agente, e não a ação, é o verdadeiro objeto do mérito.

Resta, por último, responder, já não quando uma ação moral tem mérito (como está escrito no primeiro parágrafo dessa postagem), mas sim quando um agente moral tem mérito. Conforme a hipótese-A (lembrando, de Aristóteles), o agente tem mérito quando executa uma ação moral espontaneamente e sem sacrifício. Já conforme a hipótese-K (lembrando, de Kant), o agente tem mérito quando executa uma ação moral com esforço e sacrifício de suas inclinações em contrário. Qual delas tem razão?

Creio que, se o mérito tem a ver com algo que se dá a S em reconhecimento do valor de S ao ter feito o que fez, a hipótese-A se torna difícil de ser sustentada. Seria como dizer que, entre o joão-de-barro, que faz sua casa respondendo a uma programação de espécie, e um ser humano, que faz uma catedral gótica respondendo a escolhas livres e gostos e crenças estéticas sofisticadas, o joão-de-barro tem mais valor e, portanto, mais mérito. Parece claro que não é assim, pois fazer algo que não se está condicionado a fazer e fazê-lo mesmo quando é difícil e penoso confere mais mérito ao agente.

Mas o aristotélico poderia contestar assim: Sim, mas S teria mais mérito se tivesse cultivado seu caráter a um ponto tal que a ação correta resultasse naturalmente do fluxo de sua espontaneidade. Minha resposta seria que, se a pergunta for: Qual dos dois agentes teve mais mérito no cultivo de seu caráter?, a resposta seria que foi aquele que consegue ser espontaneamente bom (supondo, claro, que essa não fosse simplesmente a disposição congênita de seu caráter, mas tenha precisado do concurso de uma cuidadosa modelagem ética ao longo dos anos). Mas, se a pergunta for: Qual dos dois agentes teve mais mérito na realização daquela ação correta em particular?, aí voltaria a insistir que tal mérito maior caberia àquele que teve que lutar contra suas inclinações e afirmar corajosamente a superioridade de seu senso de dever.

Espero pelos comentários dos leitores que suportaram bravamente essa postagem até o final.

Profº André Coelho

 
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